DO BARRO AO VERBO
UMA TRAVESSIA NORDESTINA DE PENSAMENTOS
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Textos

ENTRE O AMOR E O DESAMPARO

 

A reflexão nasceu na madrugada, hora do silêncio. Parece que só a gente existe, perdido no vazio do ambiente, enquanto os outros dormem, incólumes em seus sonos profundos. Os pensamentos surgiram como um jorro, e o ideal seria, naquele instante, colocá-los no papel. Quase tudo, nos mínimos detalhes, aqueles marasmos que insistem em se agitar dentro da mente.

 

Mas não escrevi. Só mais tarde, durante o dia, comecei a rascunhar o que a alma sussurrava. Não capturei tudo, mas o essencial ficou. É assim com a gente — poetas e escritores. Fantasiamos. Percorremos quilômetros em segundos. Voltamos ao passado. Avançamos ao futuro. Transformamos personagens. Inventamos o irreal. E mesmo o irreal pode ser assustador. É nisso que reside a beleza: sermos complexos, seres mergulhados num mundo de mistérios. Não viemos por acaso. Não acabamos com a morte. O sobrenatural está à espreita. E é isso que dá sentido ao viver.

 

Naquele instante, imaginei-me em lugares que existiram, existem e existirão. Do alto da imaginação, vi um abrigo de crianças desamparadas. Quis sair. Quis ir embora. Eu sabia que não suportaria o que estava por vir. Torturas se passariam diante de mim. Mas algo me impelia, como se estivesse paralisado diante de um filme.

 

Meu olhar então se fixou num menino de pele escura, pouco mais de sete anos, sentado, atento. Havia silêncio nele, mas um silêncio cheio: meditação, entrega, talvez êxtase. Entrei em sua mente. Quis compreender aquele emaranhado de desejos e esperanças. O que pulsava nele era isso: esperança.

 

E ele pensava:

 

— Um dia sairei daqui. Terei um pai, uma mãe. Me amarão tanto que, mesmo se me baterem — e se é que vão me bater — não sentirei rancor. Será disciplina por amor. Alguém virá a este orfanato e me escolherá, como já aconteceu com tantas crianças. Muitos já se foram. Eu ainda continuo aqui.

 

Senti um arrepio. Murmurei alto:

— Meu Deus! Podia ser eu!?

 

Mas logo veio uma paz. Ou talvez fosse uma resposta. Pensei: se minha mãe não me amasse, eu não estaria aqui.

 

O arrepio, no entanto, não se desfez. Ele me falava de algo maior: o desamparo. Eu não havia sido desamparado... Mas e os outros? Quantas imensidões de crianças sem mãe, sem pai, sem abrigo, sem orfanato?

 

Creio que foi por amor que ela me deixou aqui.

 

E me pergunto ainda:

se minha mãe não me amasse?

 

 

 

 

Autor: Jeovan Rangel

 

Texto sob licença Creative Commons

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Jeovan Alves. Porto Seguro, Bahia, Brasil – 01/10/2019

 

 

 

Jeovan Rangel
Enviado por Jeovan Rangel em 21/08/2025