A QUEDA E A SUA MARAVILHA: Vivendo entre a Nefilá e a Neflá.
No hebraico bíblico, as palavras carregam não apenas significados, mas revelam sentidos ocultos, camadas simbólicas e profundas conexões entre vivência, espiritualidade e linguagem. Um exemplo impressionante disso está na surpreendente semelhança entre duas palavras de campos semânticos aparentemente opostos: queda e maravilha.
A palavra hebraica para queda é נְפִילָה (Nefilá), e a palavra para maravilha é נִפְלָא (Niflá). Ambas derivam da raiz verbal comum נ־פ־ל (N-F-L), que significa literalmente "cair". À primeira vista, essa raiz parece ligada exclusivamente a ruína ou falência. Mas o hebraico nos ensina que da mesma raiz que indica a queda pode brotar aquilo que é maravilhoso, assombroso e surpreendente.
A Raiz N-F-L: Queda e Assombro. A raiz נ־פ־ל (N-F-L), em seu uso mais primário, expressa a ideia de algo que desaba, desmorona, ou se projeta para baixo — uma ação muitas vezes associada à derrota, fraqueza ou tragédia. No entanto, quando conjugada na forma Nifal, uma voz passiva ou reflexiva na gramática hebraica, ela dá origem à palavra נִפְלָא (Niflá), que pode ser traduzida como “maravilhoso”, “extraordinário”, “espantoso” — algo que está além da compreensão comum, que causa admiração.
A conexão entre "cair" e "maravilhar-se" parece paradoxal, mas é aí que reside a riqueza simbólica: a queda não é apenas um colapso, mas uma possibilidade de revelação. O Sentido no Sofrimento. Do ponto de vista filosófico, esse jogo linguístico aponta para uma verdade existencial profunda: o sofrimento e a queda não são necessariamente fins em si mesmos, mas podem ser portais para a transformação.
Como diria Søren Kierkegaard, um dos filósofos existencialistas mais sensíveis ao drama humano, é no desespero que o eu pode se encontrar com sua verdadeira natureza espiritual. A queda, nesse sentido, despedaça as ilusões do ego e força o sujeito a encarar sua nudez diante da existência. E é justamente nessa exposição radical que pode emergir o espanto — o thaumazein grego — que leva à filosofia e à auto-descoberta. Assim, da mesma raiz que nos lança ao chão, pode nascer a experiência do sublime.
A Perspectiva Psicológica: O Potencial Transformador da Queda. Na psicologia, especialmente na psicanálise e na psicologia analítica, encontramos eco dessa mesma ideia. Carl Jung falava do processo de individuação como um mergulho no inconsciente — muitas vezes precipitado por crises, perdas ou colapsos psíquicos. O contato com a sombra, com os conteúdos reprimidos ou ignorados, pode ser doloroso, mas é nele que reside a potência da integração e da cura.
Freud, por sua vez, via nos sintomas e nas rupturas psíquicas um retorno do recalcado, uma mensagem cifrada do sujeito sobre si mesmo. A queda — que pode se manifestar como depressão, colapso emocional ou fracasso — não é apenas sinal de adoecimento, mas também convite à escuta interna, à travessia simbólica.
Assim, em termos clínicos, muitas vezes é preciso cair para que se possa reorganizar a psique em novos patamares de autenticidade. O colapso do antigo "eu" abre espaço para a emergência do novo.
Do Abismo ao Assombro: Uma Travessia Humana. A semelhança entre Nefilá e Niflá nos ensina que a linguagem não apenas descreve o mundo, mas propõe caminhos de sentido. A queda pode ser o início de um processo de maravilhamento — não porque a dor em si seja bela, mas porque ela nos obriga a olhar para dentro, a nos reencontrar em profundidade. É na noite escura da alma que brilham as estrelas do autoconhecimento.
A filosofia, a espiritualidade e a psicologia convergem, aqui, para uma mesma sabedoria ancestral: não tema a queda, pois nela pode estar escondida a semente da maravilha.
Quando Caímos: Não é o Fim, É um Convite. Em algum momento da vida, todos nós caímos. Caímos em desânimo, em erro, em fracasso, em decepções profundas — com os outros, com a vida, ou conosco mesmos. A sensação imediata é de fim: perdemos o chão, o controle, a direção. Parece que tudo o que construímos desmorona.
Mas e se a queda for apenas o começo de algo novo? A dor da queda expõe o que antes estava encoberto: a nossa fragilidade, a ilusão do controle, o quanto estávamos tentando sustentar o insustentável. Ao cair, somos forçados a parar, olhar para dentro, repensar prioridades, reconstruir fundamentos.
Exemplo pessoal. Pense em uma fase em que você se sentiu no fundo do poço — uma falência emocional, um relacionamento que terminou de forma dolorosa, uma perda inesperada, ou o colapso de um plano que você alimentava havia anos. Agora, olhando em retrospecto, quantas lições vieram dessa dor? Quem você se tornou depois? Que forças foram ativadas em você que talvez nunca aparecessem se tudo tivesse "dado certo"?
A queda desorganiza, mas também pode libertar. Ela desfaz o que é falso e nos obriga a tocar o que é essencial. Na prática. Não apresse o reerguimento. Primeiro sinta, reconheça onde está. "Lembra-te de onde caíste". Apocalipse 2.5 Essa palavra é um chamado ao arrependimento e à restauração, incentivando aqueles que se desviaram do caminho a retornarem às suas práticas originais. O que perdeu e o que foi revelado.
Pergunte-se: "O que isso quer me ensinar?" ou "Que parte de mim eu nunca teria conhecido se não tivesse caído?"
Anote os sinais de vida nova: às vezes sutis, mas presentes — um pensamento novo, um desejo diferente, um olhar mais profundo para o outro ou para si. Compartilhe sua queda com alguém de confiança. Nomear a dor transforma a dor. Cuide do terreno. A queda é como um incêndio em um campo: devastador, mas que prepara o solo para algo nascer com mais raízes.
Cair não é o fim. Pode ser um recomeço com mais verdade, mais humildade, mais inteireza. E como no hebraico — onde queda e maravilha vêm da mesma raiz — o que hoje parece tragédia, amanhã pode ser o capítulo mais luminoso da sua história.