NOSSOS ERROS NOS DEFINEM?
Errar é, sem dúvida, parte indissociável da condição humana. Desde os primeiros passos da infância até as decisões mais complexas da vida adulta, tropeçamos, desviamos, hesitamos. No entanto, o erro, frequentemente estigmatizado como falha moral ou fraqueza de caráter, pode — e deve — ser compreendido de forma mais profunda e humanizada dentro do campo da psicologia.
A psique humana é atravessada por múltiplas camadas de desejos, defesas, conflitos inconscientes e condicionamentos históricos e culturais. Em muitos casos, o que aparece como um “erro” na superfície é, na verdade, a expressão de um conflito mais profundo, de um modo singular de lidar com o sofrimento, de uma tentativa — ainda que disfuncional — de sobreviver psiquicamente a situações internas ou externas que nos ameaçam.
A psicologia existencial, por exemplo, reconhece que viver implica risco, e que escolher — mesmo quando erramos — é a marca de um ser em constante construção. Já na psicanálise, o ato falho, o sintoma ou a repetição de um padrão autodestrutivo, longe de serem vistos como simples desvios comportamentais, são pistas do inconsciente, janelas abertas para um saber que o sujeito ainda não sabe que sabe. Assim, o erro, nesse viés, pode ser revelador: ele fala de nós, mas não nos define. Ele aponta para algo a ser escutado, elaborado, resignificado.
É preciso cuidado, porém, com o imperativo contemporâneo da perfeição. Vivemos numa cultura que exige desempenho, acerto, eficácia. O erro, nesse contexto, passa a ser tratado como sinal de inadequação, gerando vergonha, culpa crônica e até paralisia subjetiva. Muitas vezes, o sujeito, ao invés de aprender com suas falhas, se cristaliza nelas, construindo uma identidade marcada pelo fracasso. O perigo maior não está no erro em si, mas na identificação absoluta com ele — quando o sujeito deixa de ser alguém que errou para tornar-se "o errado", "o indigno", "o irrecuperável".
A psicologia, enquanto campo clínico e ético, oferece um espaço onde o sujeito pode retomar sua história sem ser julgado ou condenado por seus tropeços. Ali, o erro é desdobrado, escutado em suas entrelinhas, reintegrado à narrativa de vida como parte do processo de amadurecimento psíquico. É nesse sentido que dizemos: não somos nossos erros. Somos, antes, seres que erram, mas que podem aprender, reparar, elaborar, transformar.
Ao permitir-se falhar, o ser humano se abre também à humildade, à empatia, à escuta do outro e de si mesmo. É nessa vulnerabilidade que germina a verdadeira força psíquica: não a de quem nunca erra, mas a de quem, ao cair, é capaz de se levantar com mais consciência e responsabilidade subjetiva. O erro, quando não negado ou reprimido, torna-se um aliado silencioso do crescimento. E mais: torna-se testemunha da nossa incompletude — essa marca profunda do humano que, longe de ser defeito, é justamente o que nos torna possíveis de mudança.
Assim, se errar é humano, aprender com o erro é também um ato de coragem. E não há maior liberdade do que perceber que nossos atos não precisam definir quem somos — mas podem, se bem elaborados, nos ajudar a descobrir quem podemos ser.