ELE AINDA ME OLHA
Às vezes, é o olhar de um desconhecido que nos revela o que tentamos esquecer: também somos finitos.
Descia a ladeira devagar, embora o carro não soubesse disso.
Foi o tempo que diminuiu — não o motor.
Algo na beira da pista me puxou o olhar. Um vulto, um contorno estranho entre o concreto e a velocidade.
Era um corpo.
De bruços.
Mas com o rosto voltado para o céu — ou para mim.
Havia um silêncio gritando em volta dele.
Um silêncio que me perguntava:
Você vê?
E eu vi.
Vi um homem que talvez tivesse filhos.
Ou netos.
Que talvez tivesse saído só para comprar pão. Ou para ir ao médico. Ou para lugar nenhum.
Um homem que, de repente, não tinha mais futuro, só passado.
E mesmo assim, me olhava.
A morte tem disso: às vezes ela para a cidade inteira com um olhar só.
A viatura parou. Eu segui.
Mas o olhar ficou em mim.
Quando voltei, lá estava ele — o mesmo corpo, o mesmo silêncio, o mesmo aviso mudo:
“Avise que eu parti.”
E vieram as perguntas que ninguém pode responder:
Qual foi sua última palavra?
Havia dor?
Alguém o esperava?
Foi rápido?
Foi justo?
Mais tarde, estava coberto com um pedaço de alumínio.
Frio como a ausência.
Brilhante como quem tenta esconder o escuro.
Mas já era tarde.
Ele havia entrado em mim.
No espaço onde moram os mistérios que a gente carrega calado.
Desde então, volta e meia, sinto que ele ainda me olha.
E me pergunta com olhos sem vida:
“E você? Está pronto para a sua curva?”