No Antigo Testamento, encontramos a comovente narrativa de um chefe tribal, notável por sua piedade e integridade — um homem abençoado por Deus, de coração generoso, cuja prosperidade o elevou à condição de “maior de todos os homens do Oriente”, como bem observou Dr. Russel Shedd. Seu nome: Jó. Subitamente, esse homem virtuoso é subjugado por infortúnios sucessivos. Perde suas posses, seus filhos e sua saúde; seu corpo é tomado por uma enfermidade repulsiva, e sua alma, por um sofrimento insondável.
Em meio a essa dor, chegam os amigos, a princípio com a intenção de consolá-lo. No entanto, rapidamente assumem o papel de acusadores. Alegam que Jó está colhendo os frutos de seus pecados ocultos, e que a única saída seria o arrependimento. Outros, em uma perspectiva supostamente mais compassiva, argumentam que se trata de uma disciplina amorosa de Deus — uma espécie de pedagogia divina que visa prevenir quedas futuras.
Quem eram esses amigos? Aqueles mesmos que, em tempos de bonança, alimentaram-se de sua mesa, beneficiaram-se de sua generosidade e bajularam sua influência. Agora, surgem como arautos de uma falsa moral, revestidos de uma justiça fabricada e de uma piedade oportunista. Eram, como descrito no capítulo 30 do livro de Jó, figuras marginalizadas, antes desprezadas, mas agora travestidas de conselheiros piedosos. Tornaram-se, em sua essência, abutres.
O ser humano, infelizmente, tende a essa duplicidade. É o que Jesus denunciou: “cheios de rapina” (Mt 23.25). A metáfora é potente — pressentimos a decadência alheia como aves de rapina farejam carne em decomposição. E, sem hesitar, nos aproximamos. Não por amor ou solidariedade, mas movidos por um impulso sombrio de presenciar, explorar e — por vezes — lucrar com o sofrimento do outro.
Recentemente, ao dirigir por uma rodovia, deparei-me com uma cena que ilustra isso de forma cruel. Um grave acidente atraiu não apenas a polícia e os socorristas, mas também repórteres, ambulantes, saqueadores, curiosos. Em meio a gemidos e cheiro de combustível queimado, vi barracas improvisadas e vendedores de água e cocadas. Perguntei a um policial e descobri que o acidente ocorrera há apenas algumas horas. E no entanto, ali estavam — como aves predadoras — todos os que, de alguma forma, desejavam extrair algo da tragédia.
É essa a realidade que as palavras de Jesus denunciam: “Onde estiver o cadáver, aí se ajuntarão os abutres” (Mt 24.28). É uma verdade atemporal. Basta lembrar o caso da pequena Isabella Nardoni, cuja história comoveu e escandalizou o país. Não faltaram os que, de longe, chegaram para "acompanhar", "ajudar", "exigir justiça". Mas a motivação, muitas vezes, era outra: uma ânsia doentia de participar do espetáculo da dor, de consumir a tragédia alheia como quem consome um entretenimento grotesco.
Por que, afinal, tantos compartilham vídeos de sofrimento nas redes? Por que multidões se reúnem em torno da morte? Porque, em nosso íntimo mais obscuro, há um prazer inconsciente em testemunhar a desgraça alheia. Há uma busca por se sentir vivo diante da morte do outro, por extrair sentido do caos, ou mesmo por simplesmente estar “lá”, ainda que para nada.
Por isso, meu caro leitor, esteja atento. Em momentos de dor, surgirão falsos solidários — gente que se aproxima com abraços e bênçãos nos lábios, mas que, por dentro, celebra sua queda, atribuindo-a ao “peso da mão de Deus”. Lembra-se da pergunta dos discípulos: “Quem pecou para que ele nascesse assim?” A resposta de Jesus os desconcerta, e deve nos desconcertar também. A dor alheia não é, necessariamente, punição — e muito menos espetáculo.
Fujamos, portanto, dos abutres. Não nos tornemos como eles. Que Deus, em Cristo, nos transforme por dentro. Que Ele sonde nossos corações e revele nossas verdadeiras intenções ao nos aproximarmos de quem sofre. Que nossa compaixão seja sincera, nossa solidariedade verdadeira e nossa ajuda, desinteressada. Sejamos honestos. Amém.
Prado, Bahia, 09 de maio de 2015.
Autor: Jeovan Rangel