FOI DEUS QUE ME DEU - Uma frase, uma reflexão ontológica.
Ao dirigir pela cidade, é comum deparar-me com carros ostentando no vidro traseiro a frase: "Foi Deus que me deu." Um enunciado simples, aparentemente inofensivo, mas que encerra uma multiplicidade de sentidos e, se lido com o devido rigor, pode tornar-se um ponto de partida para uma profunda reflexão metafísica, teológica e até ética.
O que está sendo realmente dito ali? A frase, isoladamente, sugere um ato de posse justificada pela origem transcendente: Deus deu, portanto é meu. Mas que concepção de Deus está sendo pressuposta nesse "dar"? E mais: em que tipo de relação com o sagrado o sujeito se coloca ao afirmar isso?
A Escritura é clara ao afirmar que tudo pertence a Deus: "Do Senhor é a terra e a sua plenitude, o mundo e aqueles que nele habitam" (Salmo 24.1). Em Colossenses, lemos que "todas as coisas foram criadas por Ele e para Ele", o que inclui não apenas os bens visíveis, mas também as estruturas invisíveis da realidade. Nesse sentido, nada é dado por Deus como cessão de propriedade, mas como concessão de uso, como mordomia.
Se tudo é d'Ele, quem somos nós para dizer "é meu", mesmo que a origem seja divina? A frase não deveria ser, antes, "Foi Deus quem confiou a mim"? ou "Deus me permitiu usar isso por um tempo"? A noção de "dom" em muitas tradições filosóficas e religiosas não implica posse, mas responsabilidade. Um presente divino é um chamado à prestação de contas, não uma chancela de superioridade ou merecimento.
Aqui se abre uma questão ética: quando alguém escreve "foi Deus que me deu" no vidro de seu carro, isso não carrega também, ainda que implicitamente, uma nota de distinção, talvez até de orgulho espiritual? A frase, que à primeira vista parece humilde, pode conter uma sutil vaidade: como se dissesse "tenho isso porque fui abençoado, e se você não tem, talvez não tenha sido." E nesse ponto a teologia se mistura perigosamente com a meritocracia e a vaidade religiosa. Afinal, quem pode receber algo que do céu não lhe tenha sido dado? (João 3.27). Mas também: Deus dá o sol e a chuva sobre justos e injustos (Mateus 5.45). Isso significa que a dádiva divina não é prova de mérito, e sim expressão da graça comum, da bondade que transcende nossa compreensão de justiça.
Um filósofo como Kierkegaard talvez perguntasse: a frase está sendo dita na presença de Deus ou na presença dos homens? Porque, se é para os homens que se escreve isso, trata-se menos de uma confissão e mais de uma propaganda. Já Agostinho poderia lembrar que tudo o que temos de bom em nós não vem de nós mesmos, mas de Deus.
Portanto, atribuir a Deus o que se tem não é errado — desde que se compreenda que esse reconhecimento nos diminui, e não nos exalta.
Outra indagação se impõe: se tudo vem de Deus, até onde vai a responsabilidade humana? Pode alguém dizer que o que possui foi dado por Deus, sem se perguntar a que custo social, ecológico ou ético esse bem foi adquirido? Um carro de luxo comprado à custa da exploração alheia ou do orgulho pessoal ainda pode ser chamado de "dádiva divina"? Ou seria melhor dizer: "Foi minha vaidade que me deu"?
Por fim, talvez a questão mais perturbadora: pode o diabo dar algo a alguém? A Escritura relata que ele ofereceu a Jesus "todos os reinos do mundo e a glória deles", com a condição de adoração (Mateus 4.8-9). Isso nos ensina que nem tudo o que se possui foi dado por Deus — ao menos, não no sentido do dom santo. Há bens que são armadilhas, conquistas que são laços, vitórias que são derrotas disfarçadas. O que Deus dá nos aproxima Dele. O que nos afasta, mesmo que nos enriqueça, não pode vir Dele. Portanto, quando leio "foi Deus que me deu", me pergunto: quem é o Deus que você conhece? Um Deus que abençoa com bens ou que ensina com perdas? Um Deus que distribui riquezas ou que forma caráter? Um Deus de vaidades ou de cruzes?
Talvez a frase, se escrita com mais temor e menos orgulho, devesse dizer apenas: "Tudo vem dEle, tudo é dEle, e tudo volta para Ele."