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A Infância Como Álibi: Considerações Psicanalíticas Sobre Responsabilidade Subjetiva.

 

Introdução.

 

A clínica contemporânea está saturada de histórias que apontam para feridas de infância como origens de sintomas, comportamentos e traços de caráter. Essa perspectiva, embora não destituída de legitimidade, corre o risco de tornar-se uma narrativa defensiva: uma forma de imputar ao passado — e, por extensão, ao Outro — a causa dos impasses do presente. Este artigo propõe uma reflexão psicanalítica sobre os limites dessa lógica causal e a necessidade de reinstaurar a noção de responsabilidade subjetiva, conforme articulada por autores como Freud, Lacan e Safatle.

 

I. O Inconsciente é a História Reescrita.

 

Sigmund Freud inaugura a psicanálise ao mostrar que o sujeito não é senhor de sua própria casa. Os sintomas não são simples desvios de conduta, mas compromissos inconscientes com desejos recalcados, frequentemente enraizados nas experiências infantis. O caso de Dora, por exemplo, ilustra como o sintoma carrega um conteúdo simbólico que não se esgota na factualidade do trauma, mas exige uma interpretação — uma travessia do sentido.

 

Contudo, Freud também advertia que a verdade do sujeito não está na infância como fato bruto, mas na forma como esta é narrada, lembrada e reinterpretada. Ou seja: o inconsciente é estruturado como uma linguagem, e o passado não é uma origem fixa, mas uma construção retroativa. A criança que fomos é constantemente redescrita pelo sujeito que somos.

 

II. A Ética do Desejo e a Responsabilidade pela Repetição.

 

Jacques Lacan radicaliza essa leitura ao afirmar que o sujeito é efeito da linguagem, e que o desejo — motor da subjetividade — emerge a partir de uma falta constitutiva. Na medida em que o sujeito é alienado no significante do Outro, sua posição não é de plena autonomia, mas de responsabilidade em relação ao que faz com essa alienação.

 

Nesse ponto, a psicanálise se distancia de qualquer psicologismo que confunda causalidade com determinação. Lacan insiste: o sujeito é responsável por sua posição de gozo, ainda que essa posição tenha se constituído sob as condições do Outro. O gozo — aquilo que excede o prazer e insiste no sofrimento — não é imposto; ele é sustentado pelo sujeito, mesmo que inconscientemente.

 

Portanto, repetir um padrão não é simplesmente "não conseguir evitar". É também, e sobretudo, não querer saber da própria responsabilidade na sustentação daquilo que se repete. A ética da psicanálise não é uma moral de culpa, mas uma convocação ao sujeito: qual é o seu lugar no seu sintoma?

 

III. Da Vítima ao Sujeito: O Risco da Vitimização Perpétua.

 

O discurso vitimário, embora compreensível em seu apelo ao reconhecimento do sofrimento, torna-se problemático quando cristaliza o sujeito na posição de quem apenas sofre — e nunca escolhe, consente ou resiste. Ao enfatizar o que lhe foi feito, o sujeito pode evitar a angústia que advém de reconhecer-se autor, mesmo que parcial, de sua própria trama.

 

É aqui que a psicanálise se distancia das terapias do eu e do imperativo da felicidade. O que está em jogo não é restaurar a autoestima, mas permitir que o sujeito assuma a responsabilidade por seu desejo, inclusive quando este desejo é destrutivo, contraditório ou culposo.

 

Como bem afirma Vladimir Safatle: “o sofrimento não é apenas algo que se sofre, é também algo que se sustenta.” O sujeito que permanece indefinidamente na posição de vítima se defende — e muitas vezes se satisfaz — no gozo da queixa. A função do analista, nesse contexto, não é consolar, mas desmontar as armaduras da vitimização para abrir espaço a uma responsabilização que seja ética, e não moralizante.

 

IV. O Sujeito Dividido e o Laço Social.

 

A responsabilização psicanalítica não se confunde com o ideal de um eu soberano. Ao contrário: trata-se de responsabilizar-se enquanto dividido, enquanto ser desejante, enquanto alguém que nunca coincide plenamente consigo. Essa responsabilidade não é totalizante nem punitiva; é uma posição ética frente ao próprio inconsciente.

 

No laço social, esse deslocamento é fundamental. Sujeitos que justificam continuamente seus comportamentos em nome do que sofreram tendem a reproduzir — de forma inconsciente — os mesmos modos de violência que os constituíram. É o mecanismo da compulsão à repetição: o passado retorna não como lembrança, mas como ato.

 

Assumir responsabilidade é, portanto, romper esse ciclo. Não se trata de negar a dor da infância, mas de não fazer dela um álibi para a permanência na alienação.

 

Conclusão.

 

A psicanálise não nega que a infância deixa marcas. Mas ela nos obriga a perguntar: o que você faz com o que fizeram de você? A resposta a essa pergunta não pode ser dada em nome do Outro, nem tampouco delegada à história pessoal. Ela exige do sujeito um ato — ainda que mínimo — de deslocamento, de desidentificação com seu sofrimento, de responsabilização pelo desejo que insiste.

 

Em tempos de identidades fixadas e subjetividades cristalizadas na dor, a psicanálise nos convida a um caminho mais árduo: o de suportar a angústia de escolher, mesmo em meio àquilo que nos parece inevitável. Porque é nesse ponto — no ato — que o sujeito realmente se constitui.

 

 

 

 

 

"O presente artigo foi elaborado como parte de um projeto acadêmico (TCC) para a conclusão do curso de Psicanálise."

 

Prado, Bahia, 14 de Maio 2012.

 

Jeovan Rangel
Enviado por Jeovan Rangel em 29/06/2020
Alterado em 10/06/2025